sexta-feira, 8 de março de 2013

Um Romântico em Trânsito pela Terra dos Cínicos



Capítulo 1

Ali estava eu, Alberto Pedro, gravador digital pousado na mesa redonda de tampo branco, ar sério e compenetrado, pensamento vagueante e distraído. Em frente, a cabeleireira Maria Emília Lemos, nervosa e intimidada, embora vaidosa por ser entrevistada. Fora contactada por um vendedor de publicidade que se anunciou como gestor de conteúdos e que lhe prometeu uma entrevista a ser publicada num suplemento do jornal Regional, diário outrora de referência, mas entretanto em agonia acelerada. Disse-lhe, por telefone, que seria uma edição dedicada a empreendedores de sucesso. Por isso, queriam entrevistá-la, já que abrira um salão de beleza numa altura de crise, motivo mais do que suficiente para merecer honras de mediatismo. Para ver as suas palavras e as fotografias dadas à estampa deveria, apenas, custear uma pequena inserção publicitária. Bem via, com as dificuldades que a Internet colocava à imprensa, só deste modo as publicações em papel poderiam sobreviver. Feitas as contas, Maria Emília Lemos entendeu que a exposição que conseguiria valia bem os dois mil euros que lhe pediam pelo anúncio. Assinado o contrato, o assunto transitou do departamento comercial para a secção redactorial. A tarefa foi-me entregue. Tratei de contactar a cabeleireira e de agendar a entrevista. A senhora queria comparecer na redacção, local insalubre, sem condições para receber visitas. Habilidosamente, convenci-a a esperar-me no salão de beleza de que é proprietária. Nada melhor do que ser fotografada no seu espaço, certamente bem decorado e confortável. Com esta argumentação, insuflei-lhe o ego e evitou-se o embaraço. Ficou a entrevista agendada para dali a dois dias, manhã cedo, num horário de pouco movimento no salão.

Na data e à hora apalavradas, compareci n’ O Nome da Rosa, assim se designava o estabelecimento. Encontrei Maria Emília muito solícita, feliz pela honra de ser requisitada pelo sistema mediático, e produzida para o grande acontecimento. Nem vestígios da bata de trabalho. Trajava um provocante vestido colorido que lhe realçava as formas voluptuosas e destacava os seios fartos através do decote em V, o que muito me entreteve durante o serviço. Os lábios carnudos, pintados de vermelho-escarlate, as faces brilhantes, devido ao abuso de creme de rosto, as pestanas com as pontas reviradas e a sombra nas pálpebras também denunciavam o cuidado com que a cabeleireira se preparara. Já eu vesti-me como habitualmente. Camisola de manga curta com um estampado negro, calças de ganga e umas Sanjo pretas nos pés. Transportei comigo uma mochila onde guardava o gravador digital, o bloco de apontamentos, duas esferográficas, porque os jornalistas não podem correr o risco de ficar sem tinta a meio do trabalho, e a máquina fotográfica, porque se viviam tempos em que se desvalorizam os fotógrafos e em que as imagens ficavam por conta de quem escreve.

Estas entrevistas, a que chamam publi-reportagens, seguem um questionário preciso. Quem for destacado para a tarefa não precisa de ter dotes de conversador ou de entrevistador. Basta ser capaz de obedecer ao guião para retirar as informações necessárias à construção de um texto, que deverá ser o mais laudatório possível para o interlocutor, que, afinal, paga para merecer a alegria de ser elogiado na imprensa. O modus operandi ajuda os jovens inaptos e sem talento que as faculdades despejam no mercado em quantidades dignas do sector grossista. Para alguém com experiência no jornalismo e com aptidão para o ofício aquelas regras podem ser castradoras. Apesar de me ter em boa conta, ou por isso mesmo, nunca me incomodei com tais limitações. Aliás, é sempre possível trocar a ordem às questões, fazendo a conversa desenrolar-se com naturalidade. Já me calhou, naquelas funções, entrevistar um antigo ministro e presidente de um banco. Nessa circunstância e porque tenho fobia a passar por lorpa, não arranquei com a pergunta inicial do roteiro, que, no caso, seria “quando foi inaugurado o banco?”. Mesmo as publi-reportagens têm um limite de indigência intelectual e eu não gostava de colocar-me a jeito para ouvir remoques do género: “Sabe o que é a Internet? Olhe que essa informação está lá nossa página oficial”. Mas perante Maria Emília, apesar de o decote dela me sugerir outros questionamentos, soltei a interrogação da ordem:

- Quando abriu este salão?

- No início do Verão, na altura em que as senhoras ficam mais vaidosas e gostam de mostrar a boa forma nas praias, respondeu, pontuando a frase com risinhos nervosos.

- Como surgiu a ideia de designar a empresa por O Nome da Rosa?, interessei-me.

- Isso nasceu do meu gosto pela leitura. O Nome da Rosa, por acaso, nunca li. Mas tenho-o lá em casa. Foi uma vez oferecido na compra de um jornal qualquer. Como o meu salão se destina a mulheres e a rosa é uma das flores preferidas das senhoras, resolvi escolher este nome, explicou, antes de concluir, tentando ser engraçada:

- Só espero não ser acusada de plágio pelo autor, o Alberto Deco.

Ainda hoje não deve ter percebido o motivo por que me descontrolei de riso.

Comprar Livro Electrónico na Leya Online
Comprar Livro Electrónico na Amazon

Sem comentários:

Enviar um comentário