sexta-feira, 15 de março de 2013

Hipocondríaco em acção - Excerto do capítulo 10


(...) eram 4h23, segundo o relógio despertador pousado na mesinha-de-cabeceira, acordei de rompante. Ao contrário de outras noites, não estava agitado nem transpirado. Mas uma sensação estranha consumia-me. Era como se um novelo de lã me tivesse entrado na boca enquanto dormia e agora quisesse bloquear-me a respiração. Estava a tomar um medicamento que, segundo a respectiva bula, poderia causar um choque anafilático, Rapidamente juntei dois mais dois e, num ápice, coloquei-me em frente ao espelho do quarto-de-banho, goelas abertas até trás e olhos postos na úvula. Estava gigantesca. O coração disparou, comecei a caminhar de um lado para o outro, sem saber se deveria telefonar para o 112 ou não. Entretanto, sentia o corpo estranho a crescer no orifício oral. A taquicardia acelerava. Perdi a vergonha de passar por hipocondríaco histérico e telefonei para o número de emergência. O operador perguntou-me os sintomas, a designação dos medicamentos que tomava habitualmente e pediu-me alguns instantes para consultar o médico de serviço. Daí a instantes estava de novo em linha:

- Mantenha-se calmo e vá verificando se continua a respirar sem problemas, apesar do mal-estar, enquanto mandamos para aí uma ambulância.

- Ambulância? Mas é mesmo grave?

- Tanto pode ser como não ser. À Cautela enviamos a ambulância. A menos que prefira ir monitorizando a situação. Se sentir problemas para respirar pode voltar a telefonar-nos. Ou prefere a aconselhar-se com a linha Saúde para Todos?

- Se calhar é melhor. Falo com eles e logo vejo.

O operador passou a chamada telefónica. Atendeu-me um tipo enfadado, que deveria estar a ser acordado naquela altura. Ouvia mal o que eu lhe dizia e penso que não acreditava que eu estivesse doente. Tomava-me por um lunático solitário sem nada para fazer durante a madrugada. A desconfiança parecia-me estar a demover o indivíduo de atender-me convenientemente. Mas ao fim de longos segundos, que pareceram muitos minutos, ele iniciou uma tentativa de diagnóstico.

- Mas só tem a glote inchada?

(Eis o motivo da desconfiança do meu interlocutor. Queria referir-me à úvula, mas, enervado e com medo de sufocar, disse-lhe que tinha a glote inchada, o que fazia pouco sentido)

- Acho que sim.

- Acha que sim? Mas e a cara, a cara não está inchada?

Fui até junto do espelho, olhei-me de frente e de perfil, de um lado e do outro e gritei:

- Sim, a cara também está inchada. Isto é grave?

- Mas está inchada como?

- Inchada como? Inchada!

- Mas está o dobro do que é costume?

- Isso também não, está um pouco mais larga.

- E manchas no corpo, tem?

Passei-me revista em três tempos. Nada de manchas.

- Não, a pele está normal.

- Experimente chegar com o queixo ao peito, consegue?

- Sim.

Respondeu-me algo que não consegui perceber, porque ouvia uma outra operadora berrar por trás dele:

- A senhora não urina há três semanas???!!

Pedi-lhe que repetisse e o que ele dissera fora:

- Vai fazer o seguinte: ingere líquidos frescos para ver se lhe passa o tal desconforto na garganta que lhe parece um inchaço. Vai-se deitar, coloca a almofada alta para reduzir o risco de asfixia, e tenta descansar o resto da noite.

- Está bem, obrigado.

Passou-me um atestado de histeria. Mas ele tinha razão. Nada em mim intumescera. Foi tão só um ataque de pânico que me ia custando a reputação, se tivesse deixado partir a ambulância em meu socorro (...)

Sem comentários:

Enviar um comentário